quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Mostra SP – parte 2


  
O Garoto que Come Alpiste (O Agori Troei to Fagito Tou Pouliou, Grécia, 2012)
Dir: Ektoras Lygizos 


O garoto come alpiste, literalmente. Yorgos (Yannis Papadopoulos) vaga pelas ruas sem rumo, encara a vendedora de uma loja e a persegue na rua, canta esganiçadamente em casa, masturba-se, goza na mão e faz coisa nojenta com o esperma. Enfim, ele passa o filme todo mergulhado num universo próprio, distante de quase todos, ocupado com suas esquisitices.

É mais um outsider nessa leva de filmes gregos contemporâneos que insistem em revelar uma faceta doentia de seus personagens. Causam mal estar, repulsa, tentam chocar, tudo aparentemente como reflexo da crise financeira que vive a Grécia atual. Seria um momento em que um povo, outrora berço da civilização Ocidental, passa por dificuldades de cunho econômico, mas que afetaria a moral da sociedade. Não sei exatamente se a constatação é tão válida assim, mas é uma primeira impressão para nós que não conhecemos de perto a realidade do país.

Mas o que filmes como Dente Canino, L, Miss Violence e Attenberg conseguem traduzir é a falência moral da família grega, especialmente. Existe algo de doentio nas atitudes e comportamentos de quem parece viver num universo paralelo, sem rumo a tomar. No entanto, O Garoto que Come Alpiste, além de se encaixar perfeitamente nesse grupo, talvez seja um dos filmes que menos têm a dizer. Sua estética nervosa de câmera na mão também se distancia um pouco do hermetismo quase bressoniano dos demais filmes, preferindo acompanhar esse rapaz e seus disparates. É um filme inquieto, mas que não se basta depois de terminado.


Lições de Harmonia (Uroki Garmonii, Cazaquistão/Alemanha/França, 2013)
Dir: Emir Baigazin e María Florencia Álvarez 


Há alguns anos, o Cazaquistão, país remoto e de que pouco ouvimos falar, trouxe para a Mostra SP um filme encantador e melancólico em boa medida, Tulpan. Este ano mais um filme vem chacoalhar a maratona cinéfila, agora num registro bem mais endurecido e brutal, estudo de um estado de violência perpetuada em círculos viciosos.

Lições de Harmonia poderia passar como mais uma história sobre bullying, esse tema modinha recente, mas o filme é mais que isso. Aslan (Timur Aidarbekov) é um garoto de um vilarejo rural no Cazaquistão, muito perfeccionista e intimidado pela gangue de meninos no colégio. Seus modos retraídos parecem vir não só de uma personalidade já arredia por si só, mas também da intimidação que sofre na escola. Tem poucos amigos.

O filme traduz muito bem esse estado de solidão e hermetismo a partir de uma narrativa muito rígida, com câmera parada e enquadramentos em busca de certa simetria, além de contar com uma fotografia asséptica que deixa tudo muito límpido, apesar da dureza e brutalidade que ronda a história. É um filme que se faz também com muitos silêncios, reflexo interior do próprio Aslan.

Mas o curioso é como os desenhos de crueldade vão surgindo nos personagens, inclusive no protagonista. Do garoto acuado pela gangue mirim, ele vai demonstrando sua propensão à maldade através dos experimentos cruéis que faz com animais. Passamos a não duvidar de suas pretensões vingativas, embora ele também esteja à mercê desse ambiente em que violência gera mais violência, num conto cruel que não poupa ninguém. As verdadeiras lições aprendem-se na prática.


Riocorrente (Idem, Brasil, 2013) 
Dir: Paulo Sacramento


É muito renovador ver num filme brasileiro uma vontade tão grande de registrar e dar conta da sensação de morar numa grande cidade de um país tão desigual como o Brasil. Riocorrente busca um retrato impetuoso dessa cidade cão que São Paulo pode ser, num filme que nos chega sob a marca do simbolismo, exalando brutalidade a cada cena. Por isso é uma pena enorme que uma proposta tão corajosa emperre num problema grave de roteiro: falta história e faltam personagens.

Os tipos quase marginais que Sacramento escolhe para guiar sua narrativa são cheios de inquietações e vibrações, mas é muito difícil dimensioná-los no filme. Renata (Simone Iliescu) divide-se num relacionamento com seu namorado Marcelo (Roberto Audio) e com o mecânico Carlos (Lee Taylor). Esse último, por sua vez, possui uma proximidade quase paternal com o menino de rua Exu (Vinicius dos Anjos), a marginalidade estampada em sua feição dura. Todos sujeitos à vibração esmagadora de São Paulo.

Sacramento apresenta um vigor interessante na forma como cria uma série de metáforas para representar a ebulição da cidade. Riocorrente rege-se pelo signo do fogo (e a cena do corro incendiado em disparada na estrada é uma das imagens mais fortes do filme em termos simbólicos). A iminência da combustão parece guiar esses personagens, em especial Marcelo e sua agressividade latente.

O problema é quando toda essa vontade de mostrar a cara bruta da cidade esbarra num mero preciosismo simbólico de cenas que gritam a “força” do filme. É difícil entender, se importar ou acreditar naquelas pessoas que se machucam, às vezes de forma a mais gratuita possível. Parecem reféns de um estado de coisas socialmente conturbadas, mas tudo que o filme nos dá são possibilidades muito abertas de interpretação. Não parece haver consistência em seus atos e comportamentos. O filme termina e não se sabe ao certo aonde quer chegar.


Sexo, Drogas & Impostos (Spies og Glistrup, Dinamarca, 2013)
Dir: Chritoffer Boe 


Divertidíssimo esse novo trabalho de Christoffer Boe, dinamarquês acostumado a filmes mais duros e violentos, vide o intenso Offscreen. Mas agora o cineasta vem em outra chave, menos sério e mais exagerado, para contar parte da história real de dois magnatas, homens ricos e efusivos, que se unem para comprar uma companhia aérea nos anos 1960.

Poderia ser uma biografia tradicional, caso os dois sujeitos não apresentassem personalidades tão fascinantes, entre a arrogância e o sarcasmo, intensificadas pela força do dinheiro que parece lhes dotar de uma autoridade para derrubar quem se põe em sua frente. Simon Spies (Pilou Asbæk) e Moogen Gilstrup (Nicolas Bro) tornaram-se figuras públicas na Dinamarca, sempre cercadas por escândalos, festas, polêmicas. 

E o filme não tem vergonha nenhuma de assumir o tom de chacota, sem nunca julgar os personagens, apegando-se a esses homens tresloucados em sua jornada de ascensão política já que não demoram muito para entrar no jogo parlamentarista. Mais poder, mais ganância, mais sarcasmo. Um retrato de algo trágico, caso não fosse tão cômico.

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