sábado, 27 de fevereiro de 2016

Previsões para o Oscar 2016


Para entrar no jogo das especulações, comento aqui as principais indicações ao Oscar deste ano, cuja premiação acontece no domingo. Há tempos que as principais disputas (filme e direção) não eram tão acirradas, enquanto as demais seguem o fluxo da lógica das barbadas. No geral, me parece uma edição bem fraca em termos de candidatos, traço revelador das políticas de lobby da indústria cinematográfica hollywoodiana, deixando muito filme interessante de fora, além de candidatos melhores em muitas categorias. Em negrito, aponto o filme que acredito sair vencedor e abaixo minha ordem de preferência em cada categoria.


Melhor Filme

A Grande Aposta
Brooklyn
Mad Max - Estrada da Fúria
Perdido em Marte
Ponte dos Espiões
O Quarto de Jack
O Regresso
Spotlight - Segredos Revelados

Quando parecia que Spotlight vinha com tudo para vencer filme e direção, a coisa se complicou nas últimas semanas. A Grande Aposta ganhou prêmio importante do sindicato de produtores, mas O Regresso também vem crescendo nas apostas. A disputa está entre os três. Curioso porque nenhum deles parece chega perto da maestria insana que é Mad Max, de longe o favorito de muita gente, mas é demais para a Academia premiar um blockbuster, mesmo um de tom autoral. No fundo, eu queria acreditar numa vitória de Spotlight, mas hoje apostaria n’O Regresso.

Ordem de preferência: Mad Max – Estrada da Fúria, Ponte dos Espiões, Brooklyn, O Quarto de Jack, Spotlight - Segredos Revelados, Perdido em Marte, O Regresso, A Grande Aposta.


Melhor Diretor

Adam McKay (A Grande Aposta)
George Miller (Mad Max: Estrada da Fúria)
Alejandro González Iñárritu (O Regresso)
Tom McCarthy (Spotlight - Segredos Revelados)
Lenny Abrahamson (O Quarto de Jack)

Antes de mais nada, que categoria fraca! Só mesmo George Miller parece ter méritos suficientes para estar aqui e ganhar. Mas Iñárritu, que me parece o mais pretensioso cineasta da lista, o que menos merecia levar, é justo o favorito. Abrahamson, mesmo dentro da estética do filme indie, conduz muito bem as coisas, assim como McCarthy é bem clássico, apenas correto. McKay tenta reinventar a roda e só sabe fazer gracejo. A pergunta que não quer calar: cadê Haynes, Tarantino e Spielberg aqui? Bola fora da Academia.

Ordem de preferência: George Miller, Lenny Abrahamson, Tom McCarthy, Adam McKay, Alejandro González Iñárritu.


Melhor Ator

Eddie Redmayne (A Garota Dinamarquesa)
Matt Damon (Perdido em Marte)
Leonardo DiCaprio (O Regresso)
Michael Fassbender (Steve Jobs)
Bryan Cranston (Trumbo: Lista Negra)

Parece uma sessão de descarrego. Tudo indica que Leonardo DiCaprio, finalmente, por todos os santos e orixás, vai levar para casa a sonhada estatueta, merecida já há muito tempo. Uma pena que ela venha agora por um trabalho um tanto forçado de atuação, muito embora me parece que exista situações de muita força dramatúrgica ali (os momentos mais sutis de sua composição). Enfim, não tem para ninguém, além de que essa é mais uma categoria super fraca. Redmayne fazendo caras bocas (com as quais ele já ganhou um Oscar), Damon sendo somente carismático e Cranston sendo correto. Só Fassbender que parece se debater mais com um texto rico que lhe dá boas substâncias.

Ordem de preferência: Leonardo DiCaprio, Michael Fassbender, Matt Damon, Bryan Cranston, Eddie Redmayne


Melhor Atriz

Charlotte Rampling (45 Anos)
Saoirse Ronan (Brooklyn)
Cate Blanchett (Carol)
Jennifer Lawrence (Joy: O Nome do Sucesso)
Brie Larson (O Quarto de Jack)

Aqui as coisas são bem melhores. Curioso pensar na quase novata Brie Larson liderando as bolsas de aposta e se consagrando como vencedora, o que seria bem digno para o trabalho que faz. Também a jovem Ronan, depois da promessa que foi em Desejo e Reparação, mostra que cresceu e amadureceu como atriz num desempenho louvável. Mas são as veteranas Rampling e Blanchett quem mais mereciam aqui, nos entregando composições maduras de mulheres que confrontam seus desejos. Lawrence só dá as caras porque é queridinha da Academia, num desempenho – e filme – vergonhoso.

Ordem de preferência: Charlotte Rampling, Cate Blanchett, Brie Larson, Saoirse Ronan, Jennifer Lawrence.


Melhor Ator Coadjuvante

Sylvester Stallone (Creed: Nascido para Lutar)
Christian Bale (A Grande Aposta)
Mark Rylance (Ponte dos Espiões)
Tom Hardy (O Regresso)
Mark Ruffalo (Spotlight - Segredos Revelados)

Outra “justiça” que a Academia pretende fazer é premiar Stallone, ele que volta ao mítico personagem Rock Balboa, que lhe rendeu fama e certo prestígio. É uma bela composição, mas que fica aquém de seu maior rival na categoria, Rylance. Hoje fico com Stallone, embora não me surpreenderia com uma vitória do segundo. Os demais vão do afetado – Bale e Hardy – ao correto com cena para dar show – Ruffalo.

Ordem de preferência: Mark Rylance, Sylvester Stallone, Mark Ruffalo, Christian Bale, Tom Hardy.


Melhor Atriz Coadjuvante

Rooney Mara (Carol)
Alicia Vikander (A Garota Dinamarquesa)
Kate Winslet (Steve Jobs)
Jennifer Jason Leigh (Os Oito Odiados)
Rachel McAdams (Spotlight - Segredos Revelados)

De cara, as presenças aqui de Vinkander e Mara deixam a categoria estranha, pois ambas são protagonistas de seus respectivos filmes. Mas a Academia e os estúdios pensam politicamente. Mara me parece a melhor aqui, atuação de minimalismos intensos. Mas a vitória parece rondar Vinkander, embora Winslet possa surpreender. Fora elas, Jason Leigh me parece a mais forte, mas com poucas chances. McAdams está sobrando, indicação dispensável.

Ordem de preferência: Rooney Mara, Jennifer Jason Leigh, Kate Winslet, Alicia Vikander, Rachel McAdams.


Melhor Roteiro Original

Divertida Mente (Pete Docter, Meg LeFauve, Josh Cooley, Ronnie del Carmen)
Ex-Machina: Instinto Artificial (Alex Garland)
Ponte dos Espiões (Matt Charman, Ethan e Joel Coen)
Spotlight - Segredos Revelados (Josh Singer e Tom McCarthy)
Straight Outta Compton - A História do N.W.A. (Jonathan Herman e Andrea Berloff)

Se Spotlight realmente perder o prêmio de melhor filme que ele vinha cercando há tempos, roteiro parece ser uma ótima consolação. E mesmo merecido por se tratar de uma pesquisa cuidadosa e madura, sobre temas complicados (pedofilia e jornalismo), muito embora os roteiros de Divertida Mente e Ex-Machina sejam bem mais criativos e inteligentes. Talvez a animação possa surpreender, ou mesmo uma possível vitória para Straight Outta Compton, depois da polêmica sobre a não indicação de nenhuma pessoa negra este ano, pode pesar para os votantes.

Ordem de preferência: Divertida Mente, Ex-Machina: Instinto Artificial, Ponte dos Espiões, Spotlight - Segredos Revelados, Straight Outta Compton - A História do N.W.A.


Melhor Roteiro Adaptado

Brooklyn (Nick Hornby)
Carol (Phyllis Nagy)
A Grande Aposta (Charles Randolph e Adam McKay)
Perdido em Marte (Drew Goddard)
O Quarto de Jack (Emma Donoghue)

Também parece certo que A Grande Aposta leve esse aqui, como confirmação do quanto a Academia gosta do filme, vindo crescendo nas apostas e nos outros prêmios que já levou. Tirando Perdido em Marte, todos os demais me parecem fortes roteiros, sendo O Quarto de Jack um possível azarão. Mas o humor ácido e irreverente de A Grande Aposta, para falar de crise econômica, é, de fato, um diferencial do longa.

Ordem de preferência: Carol, Brooklyn, O Quarto de Jack, Perdido em Marte, A Grande Aposta.


Melhor Filme Estrangeiro

O Abraço da Serpente (Colômbia)
Cinco Graças (França)
O Filho de Saul (Hungria)
A War/Guerra (Dinamarca)
O Lobo do Deserto (Jordânia)

É mesmo um saco essa coisa de “filme de holocausto” já chegar como favorito pleno somente por sua escolha temática. O Filho de Saul é certo como vencedor aqui, numa categoria um tanto fraca – o próprio filme me parece bem maneirista. O Abraço da Serpente merecia muito mais, enquanto os demais me soam concorrentes menores, menos A War, que me parece mais forte e digno.

Ordem de preferência: O Abraço da Serpente, A War, Cinco Graças, O Filho de Saul, O Lobo do Deserto.


Melhor Documentário

Amy
Cartel Land
O Peso do Silêncio
What Happened, Miss Simone?
Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom

Vi somente três filmes aqui: Miss Simone?, O Peso do Silêncio e Amy, este último tendo ganhado grande parte dos prêmios prévios e o favorito para levar. A passagem avassaladora e polêmica de uma personalidade adorada do público parece irresistível, apesar do filme trabalhar muito bem e com riqueza as imagens de arquivo. Se há um azarão aqui seria Cartel Land.

Ordem de preferência: Amy, O Peso do Silêncio, What Happened, Miss Simone?.


Melhor Animação

Anomalisa
Divertida Mente
As Memórias de Marnie
O Menino e o Mundo
Shaun, O Carneiro

Já aqui temos a melhor categoria desta edição, todos os filmes são ótimos. Mas Divertida Mente é, mais uma vez, a confirmação do triunfo da Pixar no campo da animação, um trabalho adorável de empatia, emoção, criatividade e maturidade. Meu preferido é O Menino e o Mundo e sua bela crônica do olhar infantil sobre o mundo ao redor, mas já é uma vitória do Brasil o filme ser indicado. Há também o belo retrato humanista de gente de carne e osso feito em Anomalisa, ou a melancolia doce de As Memórias de Marnie, ou a diversão inteligente de Shaun, o Carneiro. Qualquer um que vencesse seria bem-vindo.

Ordem de preferência: O Menino e o Mundo, Anomalisa, Divertida Mente, As Memórias de Marnie, Shaun, O Carneiro.


Meu ranking geral:

Mad Max - Estrada da Fúria ****½
Carol ****
Os Oito Odiados ****
O Abraço da Serpente ****
O Menino e o Mundo ****
Anomalisa ****
Ponte dos Espiões ****
Star Wars: O Despertar da Força ****
Ex-Machina: Instinto Artificial ***½
Brooklin ***½
O Peso do Silêncio ***½
O Quarto de Jack ***½
Divertida Mente ***½
Amy ***½
As Memórias de Marnie ***½
A War ***½
What Happened, Miss Simone? ***½
Shaun, O Carneiro ***½
Steve Jobs ***
Spotlight - Segredos Revelados ***
45 Anos ***
007 Contra Spectre***
Creed: Nascido para Lutar ***
Straight Outta Compton – A História do N.W.A. ***
Perdido em Marte **½ 
Cinco Graças **½
Sicario: Terra de Ninguém **½
O Filho de Saul **½
A Grande Aposta **½
O Regresso **½
O Lobo do Deserto **½
Cinderela **
A Garota Dinamarquesa **
Trumbo – Lista Negra *½
Joy – O Nome do Sucesso *½

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Descobrindo o céu

O Quarto de Jack (Room, Irlanda/Canadá, 2015) 
Dir: Lenny Abrahamnson



O Quarto de Jack é certamente a cota para produções indie entre os indicados ao Oscar deste ano. É uma bela distinção para um filme pequeno que encerra algumas questões morais e de sofrimento, mas vence mesmo pela força emotiva, escorregando um pouco no sentimentalismo, mas sem entrega total ao piegas.

Há algo mesmo de arriscado em construir uma narrativa que se passe, a priori, toda dentro de um mesmo ambiente, o quarto que serve como cativeiro para Ma (Brie Larson) e seu filho de cinco anos, Jack (Jacob Tremblay). Sequestrada e mantida presa por anos, sofreu abusos e gerou um filho que nasceu e cresceu ali, sem nunca ver a luz do dia, a não ser pela claraboia do lugar de onde ele divisa uma parte mínima do céu.

Mas O Quarto de Jack está pouco disposto a revelar e discutir o passado dos dois, quais circunstâncias levaram àquela situação, como eles sobreviveram ali tanto tempo e qual a real relação entre Ma e o seu sequestrador, o Velho Nick (vivido por Sean Bridgers). O que está em jogo aqui é maneira como aqueles personagens se relacionam com um espaço tão mínimo e limitador, com suas regras internas e, principalmente, como uma mãe lida com um filho pequeno criado naquelas condições.

Jack é curioso, amoroso, mas também se irrita fácil, não entende e não quer entender certas limitações que lhe são impostas, ao passo que enxerga tudo com muita ingenuidade. Ele é mesmo o eixo central da história porque é a partir do seu ponto de vista que conhecemos aquele mundo. Muito das percepções e fabulações sobre o espaço que ele conhece é posto no filme como construção a partir do imaginário pueril do garoto, o que confere ao filme certo ar de lirismo e leveza.

Mas é através dessa opção de olhar que talvez o filme consiga se desvencilhar de certo problema moral do qual ele poderia ser acusado. Em certo sentido, existe ali uma romantização do cativeiro e do abuso que aqueles dois sofrem, um tratamento quase poético sobre a condição humana e o amor de mãe e filho, via visão imatura da criança. Isso faz muito diferença porque, dessa forma, o filme não se vê compelido a racionalizar aquela situação, antes e depois. O Quarto de Jack nos coloca na pele de um personagem que nasceu preso e, futuramente, encontrará um mundo todo a ser descoberto.



Daí que o retrato composto pelo filme nunca é de agonia, sofrimento ou angústia, porque Ma sempre buscou criar um ambiente aprazível e feliz para o filho – o que nos lembra negativamente de um filme como A Vida é Bela. Acontece que aqui o horror ao redor tem consequências duras na vida deles, embora Jack pareça não entender muito bem até onde isso se aplica justo por não entender o outro lado da situação. O próprio fato do filme se ancorar numa narração em off do garoto com seus pensamentos pueris distanciam a história do drama pesado e mira num quase lirismo que o filme adota.

Vale frisar que Tremblay demonstra não só ser um ator de potencial no minimalismo com que compõe suas ações, como o próprio filme não desenha a figura infantil de modo a buscar empatia direta com o público através de certas espertezas (o mal de muitos personagens infantis no cinema), apesar do carisma que ele naturalmente inspira. Jack age como se espera de um garoto na sua idade naquelas condições especiais. Importante lembrar que o filme possui duas partes muito distintas, o que exige de Tremblay, principalmente, uma mudança de chave na atuação, reflexo do comportamento do personagem numa circunstância completamente nova – e arrebatadora para ele. 

Se o diretor Lenny Abrahamnson cai em poucos cacoetes do filme indie, ele também é feliz em equilibrar esses dois momentos distintos da narrativa. Se na primeira metade o esforço é de manter a atenção em situações tão pontuais e limitadoras, o segundo momento é quase de ampliação das possibilidades de absorção de uma nova realidade por parte dos personagens. É quando o filme se torna mais fugidio, mas não menos interessante ao observar um difícil período de (re)adaptação. E o que estava inscrito no dispositivo vendável do “cenário único”, mais o tom leve e os pensamentos românticos do garoto, amplia-se agora para um estudo de atitudes e comportamentos humanos mais latentes, contabilizando aí os machucados que cada um passa a carregar.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O preço da acidez

Deadpool (Idem, EUA/Canadá, 2016)
Dir: Tim Miller


O intuito principal de Deadpool é de ser um filme incomum de super-heróis, destacar-se no cenário de produções constantes desses filmes, ainda mais com a briguinha boa entre adaptações dos personagens da DC Comics e da Marvel – sendo o Deadpool uma das criações desse último. Abusa do humor negro e da acidez para dar ar de filme descolado, cool e vibrante, o que acaba mesmo vendendo com muito sucesso esse personagem de espírito livre e travesso. Por tudo isso, é um belo acerto.

Por ser um filme muito agradável de assistir, espécie de passatempo atrativo de onde se sai com sorriso no rosto, Deadpool vale mais do que por um plot inicial e mais ainda do que por certas curtas dramáticas que seu roteiro poderia apresentar. Num momento em que as adaptações de quadrinhos para o cinema ganharam ar de seriedade e realismo, às vezes inchados nas questões que trazem, na formatação do universo de seus personagens e nas reviravoltas de roteiro, Deadpool firma-se no oposto: quer tirar onda de si e daquele universo em que ele foi inserido sem desejar.

O que mais motiva o Deadpool a buscar vingança contra quem o transformou no super-heroi com poderes de autoregeneração é que tudo isso estragou o romance tórrido e animado com sua namorada. Tem uma pitada aí de impedir que os caras maus deem continuidade a seus planos maléficos, mas isso é o de menos.

É como se o filme retornasse a certa aura do Batman de Tim Burton do final dos anos 1980, com aquele apuro visual sombrio e gótico, mas marcado por certo sarcasmo e que mirava num divertimento menos autoimportante. Deadpool, ainda que mantenha a mesma marca do realismo na sua feitura – e as cenas de ação são realmente muito boas – faz da personalidade debochada de seu protagonista sua grande arma e foco da atenção que faz o filme vibrar de fato. Nessa busca por comunicação imediata com o público, o filme também não mascara suas piadas de teor sexual, sobre drogas e sobre os deslizes da própria Marvel em outras produções.


A metralhadora de piadas e gracejos que o personagem vivido com traquejo e desenvoltura por Ryan Reynolds não para um minuto no filme, como uma prova de fogo. Em alguns momentos cansa mesmo pela investida constante, mas acerta em vários momentos, reprocessando o próprio universo da Marvel (“MacCavoy ou Stewart?” é desde já uma tirada clássica) e também de certa cultura pop atual (o sonho dentro de um filme de Liam Neeson é outro momento inspiradíssimo). 

Porém, por um lado o filme corre o risco de ser lembrado somente como aquele que provocou umas risadinhas espertas, que assumiu e combateu com humor certos moralismos sociais para fazer gracejos rápidos, piadas sujas que brincam com o imaginário mais safado dos espectadores e criar uma sensação de feel good depois da sessão. É um risco que o filme corre e é curioso pensar como poderá servir de inspiração a partir de então, um tipo de “renovação” ou um mero “coffee break” no contexto atual da indústria do entretenimento hollywoodiano. Mas do jeito em que está, para o que se tem hoje, é muito bom se deparar com esse tipo de filme nos cinemas.
 

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Escolha de vida

Brooklin (Brooklyn, Irlanda/Reino Unido/Canadá, 2015) 
Dir: John Crowley


A impressão primeira é que Brooklin vai se concentrar na perspectiva histórica que traça o processo de imigração irlandesa para os Estados Unidos ali no início do século XIX, de maioria católica. A figura central aqui é Eilis (Saoirse Ronan), jovem tímida e recatada que enxerga uma rotina insossa e aprisionada na sua cidade natal no interior da Irlanda e por isso decide embarcar num navio e ir tentar a vida no ideário das oportunidades que é a América.

O início do longa é um tanto desastroso: a personagem é posta à prova numa série de perrengues que deve passar – dor de barriga no meio da noite, agitação em alto mar, comida ruim. Tudo isso poderia supor uma espécie de via-crúcis da garota que ainda iria sofrer muito nos Estados Unidos até conquistar uma redenção, mas Brooklin prefere traçar um caminho muito mais singelo e sincero nesse trajeto de crescimento pessoal.   

Aos poucos o filme abraça o melodrama, mas toma o cuidado de nunca cair no exagero, especialmente na maneira de criar nuances para os personagens que circundam a nova vida de Eilis. Ora, a dona da pensão onde ela se instala poderia ser uma megera chata, mas se mostra afável, ainda que com ares conservadores; as garotas que dividem a pensão são saidinhas e estranham a estrangeira interiorana, mas acabam ajudando-a a se adaptar à modernidade novaiorquina; até o rapaz por quem ela se enamora demonstra ser um tipo simpático, pobre, mas trabalhador, longe de ser um possível aproveitador que a fizesse sofrer, membro de família numerosa, excêntrica, mas agradável.

Mesmo a ideia de amor ideal surge com certa parcimônia no filme. Ele se apaixona mais rapidamente por ela do que a recíproca. Ela precisa de mais tempo para se acostumar com esse sentimento, embora vá se tornar indiscutível, mais adiante, como eles se amam. Assim também acontece com a adaptação paulatina de Eilis à nova vida no famoso bairro de que se tornou reduto dos irlandeses na época.

O roteiro, adaptado de livro homônimo pelo escritor pop Nick Hornby, encontra a maneira mais sincera de desenhar seus personagens e os dramas que os envolvem, sem precisar apelar para os subterfúgios simplistas do dramalhão, com tipos marcados por princípios rasos ou maniqueístas (exceção feita à dona da loja que emprega Eilis na cidadezinha da Irlanda, com ares de bruxa má).



E o cineasta John Crowley, mesmo numa direção clássica e direta, entende muito bem esse tempo que os personagens precisam para revelar suas camadas, assim como a história precisa revelar o amadurecimento da protagonista. É bem bom ver esse tipo de filme ganhando destaque no Oscar, assim como o belo desempenho de Saoirse Ronan, quando se têm valorizado tantos filmes inchados e apressados, beirando a superficialidade.

É esse tipo de tratamento singelo que joga o grande conflito da história para outro campo, que aliás surge somente na segunda metade da narrativa. Há uma reviravolta no meio da história que faz a personagem voltar à Irlanda natal. Aos poucos, o destino lhe reserva outras oportunidades e um caminho distinto, longe do que ela traçou até então. O que parecia um vento a favor, coloca a jovem num ponto de pressão que lhe exige cada vez mais uma decisão afirmativa.

Sem nunca querer soar grandioso, Brooklin confronta sua protagonista com uma escolha de vida. Chega o momento dela decidir o lugar a que pertence, onde ela poderá chamar de lar, a casa em que habita. O filme pode ser simples na estrutura que emprega para chegar até esse ponto, mas guarda complexidades morais e particulares para sua protagonista, além de nunca dar um passo maior do que o necessário para contar essa história de decisões.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Cédula de melhores de 2015


Chega nesse momento do ano em que é preciso escolher os melhores do ano em várias categorias. Está chegando o Alfred (prêmio da Liga dos BloguesCinematográficos) e o Blog de Ouro (prêmio da Sociedade Brasileira deBlogueiros Cinéfilos), grupos os quais integro (o prêmio da Associação Brasileira de Críticos de Cinema – Abraccine – já foi votado e divulgado aqui). Abaixo estão meus votos.


Melhor Filme:

Leviatã
O Segredo das Águas
Branco Sai, Preto Fica
Mad Max: Estrada da Fúria
A Visita
As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto
Norte, O Fim da História
Dívida de Honra
Força Maior
Casa Grande


Melhor Diretor:

Andrey Zvyagintsev (Leviatã)
Miguel Gomes (As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto)
Lav Diaz (Norte, O Fim da História)
George Miller (Mad Max: Estrada da Fúria)
Naomi Kawase (O Segredo das Águas)

Por um fio: Nuri Bilge Ceylan (Sono de Inverno) e Roman Polanski (A Pele de Vênus)


Melhor Ator:

Sid Lucero (Norte, O Fim da História)
Michael Fassbender (Macbeth: Ambição e Guerra)
David Oyelowo (Selma: A Luta pela Igualdade)
Jack O’Connell (Encarcerado)
Tommy Lee Jones (Dívida de Honra)

Por um fio: Guillermo Francella (O Clã) e Brendan Gleeson (Calvário)


Melhor Atriz:

Marion Cotillard (Dois Dias, Uma Noite)
Nina Hoss (Phoenix)
Charlize Theron (Mad Max: Estrada da Fúria)
Regina Casé (Que Horas Ela Volta?)
Hilary Swank (Dívida de Honra)

Por um fio: Juliette Binoche (Acima das Nuvens) e Imogen Poots (Um Amor a Cada Esquina)


Melhor Ator Coadjuvante:

Roman Madyanov (Leviatã)
Steve Carrell (Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo)
Edward Norton (Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância))
J. K. Simmons (Whiplash: Em Busca da Perfeição)
Alejandro Goic (O Clube)

Por um fio: Mark Rylance (Ponte dos Espiões) e Josh Brolin (Vício Inerente)


Melhor Atriz Coadjuvante:

Julianne Moore (Mapas para as Estrelas)
Antonia Zegers (O Clube)
Deanna Dunagan (A Visita)
Angelina Kanapi (Norte, O Fim da História)
Camila Márdila (Que Horas Ela Volta?)

Por um fio: Jessica Chastain (O Ano Mais Violento)


Melhor Elenco:

Leviatã
Acima das Nuvens
Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)
Vício Inerente
O Clube

Por um fio: Mapas para as Estrelas


Melhor Roteiro Original:

As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto
Nostalgia da Luz
O Amor é Estranho
Que Horas Ela Volta?
Acima das Nuvens

Por um fio: Winter Sleep


Melhor Roteiro Adaptado:

O Conto da Princesa Kaguya
A Pele de Vênus
Macbeth: Ambição e Guerra
Noites Brancas no Píer
Norte, O Fim da História

Por um fio: Dívida de Honra


Melhor Filme Brasileiro:

Branco Sai, Preto Fica
Casa Grande
Depois da Chuva
Que Horas Ela Volta?
Últimas Conversas

Por um fio: Chatô – O Rei do Brasil


Melhor Documentário:

Nostalgia da Luz
Últimas Conversas
Amy
A Vida Privada dos Hipopótamos
O Sal da Terra

Por um fio: Campo de Jogo


Melhor Animação:

O Conto da Princesa Kaguya
Divertida Mente
As Memórias de Marnie
Shaun, O Carneiro
O Pequeno Príncipe


Melhor Trilha Sonora:

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)
Mad Max: Estrada da Fúria
Ponte dos Espiões
Corrente do Mal
O Conto da Princesa Kaguya

Por um fio: Sicario – Terra de Ninguém


Melhor Canção:

Glory (Selma)
Timbuktu Fasso (Timbuktu)
Bye Bye Amor (Amor, Plástico e Barulho)
Inochi no Kiodu (O Conto da Princesa Kaguya)
Who Can You Trust (A Espiã que Sabia de Menos)


Melhor Fotografia:

Adeus à Linguagem
Sono de Inverno
Ponte dos Espiões
Dívida de Honra
Macbeth: Ambição e Guerra

Por um fio: O Clube


Melhor Direção de Arte:

O Expresso do Amanhã
Branco Sai, Preto Fica
Ex-Machina: Instinto Artificial
A Colina Escarlate
Chatô: O Rei do Brasil

Por um fio: Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)


Melhor Figurino:

O Expresso do Amanhã
A Colina Escarlate
A Teoria de Tudo
Uma Nova Amiga
Caminhos da Floresta


Melhor Montagem:

Mad Max: Estrada da Fúria
Whiplash: Em Busca da Perfeição
As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto
Amy
A Vida Privada dos Hipopótamos

Por um fio: Nostalgia da Luz e Campo de Jogo


Melhor Maquiagem:

Foxcatcher: A História que Chocou o Mundo
Mad Max: Estrada da Fúria
O Expresso do Amanhã
Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência
No Coração do Mar


Melhores Efeitos Visuais:

Homem-Formiga
Star Wars: O Despertar da Força
Jurassic World
Mad Max: Estrada da Fúria
Perdido em Marte

Por um fio: Kingsman


Melhor Som:

Mad Max: Estrada da Fúria
Sniper Americano
Whiplash: Em Busca da Perfeição
Corrente do Mal
Star Wars: O Despertar da Força

Por um fio: Chappie


Melhor Cena:

Avalanche (Força Maior)
Speak Low (Phoenix)
Val na Piscina (Que Horas Ela Volta?)
Bomba explode na cabeça (Branco Sai, Preto Fica)
Bye Micah! (Mapas para as Estrelas)

Por um fio: Não guarde rancor (A Visita) e Último solo de bateria (Whiplash: Em Busca da Perfeição)


Direção Estreante:

Adirley Queirós (Branco Sai, Preto Fica)
Tommy Lee Jones (Dívida de Honra)
Cláudio Marques e Marília Hughes (Depois da Chuva)
Damien Chazelle (Whiplash: Em Busca da Perfeição)
David Robert Mitchell (Corrente do Mal)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Abraço de urso

O Regresso (The Revenant, EUA, 2015) 
Dir: Alejandro G. Iñárritu


O mexicano Alejandro González Iñárritu tomou gosto por essa coisa de fazer estripulia com a câmera. Ganhou lugar cativo na indústria hollywodiana e, depois de ter engrossado o currículo com Oscar de filme, direção e roteiro por Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), quis repetir o feito apostando em algo suntuoso, com tom de “desafiador”.

Porém, uma simples transferência de conceito nem sempre tem os mesmos resultados. Aquilo que funciona em Birdman, por ser este um grande labirinto de descontroles emocionais, na maior parte das vezes torna-se mero capricho em O Regresso. O novo trabalho do diretor vem envolto em aura de “história de sofrimento” que parece ter o maior prazer em ver seu protagonista chegar ao limite da dor e provação, acrescido aqui da atmosfera de “visceralidade” que o filme busca imprimir em grande medida na narrativa.

É de fato uma jornada árdua, baseada em fatos verídicos vividos pelo aventureiro Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) lá pelos idos de 1820, no processo de entrada pelo noroeste americano. Ele integra um grupo de exploradores de pele que é atacado por uma tribo indígena e vê o grupo sendo dizimado impiedosamente, em meio aos perigos da região.

O maior esforço do roteiro está em fazer do (des)caminho do protagonista uma espécie de exercício de masoquismo – quanto mais sofrimento, melhor. Glass enfrenta desde os desafios da natureza, com sua paisagem gélida e inóspita, e infortúnios bestiais, como o já famoso ataque da ursa selvagem, até a impossibilidade de seus companheiros de cuidar dele, além da traição de um dos componentes, o oportunista John Fitzgerald (Tom Hardy).

No entanto, o maior incômodo em O Regresso reside mesmo na pretensão de Iñárritu e em certa obstinação sua em soar o tempo todo grandioso e imponente, quase religioso. A câmera prefere longos takes em movimento constante, música, um tom solene e os planos abertos buscam enquadrar toda a grandiloqüência da paisagem. Tudo isso para contar uma história muito simples de superação e vingança. É como se tomasse um grande fôlego para um mergulho bem superficial.

Se a história aqui parece simples é porque o roteiro não se preocupa em dimensionar algumas situações e personagens. Não se sabe ao certo, por exemplo, qual a relação de Glass com os povos nativos – ele viveu um tempo em alguma tribo, tendo até mesmo um filho com uma índia, jovem que inclusive o acompanha no batente –, nem sabemos por que Fitzgerald o odeia tanto, tornando-se ele o vilão natural e raso da história, acompanhado por uma atuação repleta de “caras de mau” de Hardy.

Curioso como se tem chamado tanta atenção para a beleza das imagens e para o excepcional trabalho técnico realizador pelo diretor de fotografia Emmanuel Lubezki, especialmente pelo uso magnífico de luz natural em todo o filme. O resultado plástico é realmente evidente, mas ao mesmo tempo enche de beleza uma trajetória de dor e sofrimento, apesar da naturalidade da luz render algo de “sujo” na composição estética. Há certa pretensão aqui também porque a obstinação pelo valor visual parece valer mais que a própria história que está sendo contada. Nota-se isso nos flashbacks que tentam dar conta da vida pregressa de Glass – momentos em que ele agoniza no limiar da vida –, cheio de imagens que se querem “poéticas” ou “oníricas”, apoiadas num melodrama frágil, e menos interessadas em dar consistência à história pregressa desse personagem. Mais importante que isso é que as imagens soem “líricas”.

A composição visual do filme lembra muito os trabalhos de Terrence Malick – como quem Lubezki possui muitas parcerias anteriores – além de ecos de Tarkovsky, talvez as maiores referências aqui. No entanto, no caso desses diretores, a manipulação da luz e da imagem majestosa esteja a serviço da carga emocional dos personagens e não o contrário. Em O Regresso isso parte do perfeccionismo até soar muito gritante e, por isso, também gratuito. 

Na busca por essa construção imagética impressionável, o filme acaba por se arrastar mais do que merecia, salpicada por momentos dessa beleza plástica que destila prazer em se autoexibir. Quem melhor consegue se esquivar um pouco mais desse tom é o ator Leonardo DiCaprio, que só em alguns momentos abusa do exagero. Consegue dar a dimensão do martírio com poucas ou nenhuma palavra, revelando a maturidade que alcançou como ator. Uma pena que o filme precise de muito mais que isso para se impor como narrativa potente e arrebatadora, embora a tentativa extrema possa causar o efeito contrário.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Mostra de Tiradentes – Parte IV


Índios Zoró – Antes, Agora e Depois? (Idem, Brasil, 2016)
Dir: Luiz Paulino dos Santos



Figura por si só mítica e célebre, decano do cinema baiano e presença muito forte em certos momentos da história do cinema nacional (como no caso de Barravento, filme que começou a dirigir, mas por desavenças com o produtor, teve de ceder lugar ao jovem Glauber Rocha em seu primeiro longa-metragem ali; ou também no fundamental curta Um Dia na Rampa), Luiz Paulino dos Santos é um senhor de 83 anos, há muito afastado do cinema.

Surpreendentemente, a Mostra de Tiradentes descobre esse filme curioso e que lança outro olhar para a questão indígena. Se a competição principal do festival é destinada a filmes de realizadores iniciantes em seus primeiros longas-metragens, a presença de Luiz Paulino aqui é dessas apostas corajosas que são a marca de Tiradentes. Isso por que existe o privilégio do filme de risco, lugar que Índios Zoró – Agora, Antes e Depois? preenche muito bem.

Em 1983, Luiz Paulino filmou o curta Ikaténa – Vamos Caçar, sobre a tribo Zoró. Agora, o diretor retorna ao lugar e encontra os índios evangelizados. Se a comunidade indígena já sofreu uma série de modificações culturais e de modos de vida diante de uma sociedade “branca” bastante desafeita aos povos nativos, também Luiz Paulino já não é mais o mesmo.

E isso é importantíssimo no filme porque sua figura é central, a ponto dele ser pensado mesmo como personagem principal da narrativa. Mais espiritualizado e evocando referências xamânicas, Luiz Paulino é quem guia os caminhos do filme, olhando com atenção e carinho o deslocamento da figura indígena naquele lugar, oferecendo espaço para que o diretor posicione-se, mas com o traço da generosidade afetuosa que ele nutre por aquela comunidade, e nunca de modo meramente denuncista.

É bom ver – como também está em outro filme da competição em Tiradentes, Taego Ãwa – um olhar sobre os povos nativos que não passa pelo exotismo, pela observação antropológica/sociológica, muito menos pela condescendência. Luiz Paulino se insere com muita naturalidade naquele espaço, sente suas reconfigurações, mas continua disposto a gostar dele.

Índios Zoró – Antes, Agora e Depois? deixa que o diretor/personagem interaja com o ambiente e seus novos integrantes, mas flerta bastante com a memória, especialmente nas imagens que resgata do curta anterior de Luiz Paulino e as ressignificações que isso provoca, nele e no espectador. Seria uma experiência emocional muito forte - e não duvido que seja -, mas a preferência aqui é pela singeleza.


Aracati (Idem, Brasil, 2016)
Dir: Aline Portugal e Julia de Simone



Aracati atravessa tema muito caro às questões de (des)ocupação de espaço e que já tem sido abordado em alguns filmes: cidades e/ou pequenas comunidades que desaparecem para dar lugar a grandes empreendimentos, como represas ou fábricas. É o progresso chegando, e vem com ele os questionamentos de “para quem?” e “a custo de quê?” Apesar de apontar para essas proposições sociopolíticas, Aracati busca o registro da melancolia poética para dar conta de uma paisagem bruscamente ressignificada.

No caso aqui, estamos na região do interior do Ceará, o Vale do Jaguaribe. A ideia é perseguir a rota do vento Aracati, num movimento que sai do litoral e adentra o interior do Estado. E filmar o vento se torna aqui uma curioso, além de corajoso, ponto de partida, espécie de abstração que, mesmo na tentativa de ser seguida à risca, ganha outros propósitos porque o vento não aparece sozinho na paisagem.

Trata-se, talvez, e no bom sentido, de uma bela desculpa para olhar uma região e algumas de suas implicações na relação com outros elementos - tecnológicos, humanos. O filme se esclarece todo por imagens – não há narração ou letreiros explicativos – e a imagem surge aqui como força não só estética, mas como modo de expressão que interpela a observação.

A entrega a esse tipo de registro faz ver, para além da beleza – mesmo que à natureza se misturem máquinas e engrenagens, inseridos ali pelo homem – o espaço em modificação, sem que o filme soe de algum modo denuncista. Ao contrário, é muito plácido e guia o espectador por um caminho de contemplação e descoberta, ainda que também de questionamentos.

Existe um formalismo que se apresenta no enquadramento rígido, no plano longo e na contemplação dos espaços. De início, pode distanciar e parecer frio demais, excessivamente preocupado com a forma, mas aos poucos o filme te ganha não só pelas belas cenas, mas pela compreensão do tipo de mudança brusca que aquele lugar sofreu.

Quando o elemento humano entra de modo mais concreto na narrativa – penso que ele sempre esteve ali, pelo menos atrás da câmera, mesmo que como sujeito que vem de fora – o filme cresce um pouco mais. Os homens da terra, antigos moradores das redondezas que já parecem deslocados naquele espaço tão pouco afeito à presença humana, são interpelados pela equipe de filmagem e acrescentam novos componentes ao filme: desde as questões sobre o que seria real ou não, os limites da ficção, a possibilidade do surreal e mesmo o repensar do lugar do Ceará no mapa do Brasil, tudo isso com muita graça. São momentos de rara beleza e espontaneidade que surpreendem pela complexidade que trazem à narrativa. 

É como se essa presença natural do ser humano trouxesse consigo um componente fabular, pondo em questão a própria natureza realista daquele lugar – e todo aquele maquinário das fábricas e torres eólicas não seriam, justamente, marcas “de outro mundo”, alienígena? Dessa forma, Aracati torna-se uma bela experiência de despreendimentos e descobertas, ainda que sobre uma sensação de perda pelo o que aquele lugar se tornou.